domingo, 29 de maio de 2022

Gato num apartamento vazio

 



Morrer — isso não se faz a um gato.

Pois o que há de fazer um gato
num apartamento vazio.
Trepar pelas paredes.
Esfregar-se nos móveis.
Nada aqui parece mudado
e no entanto algo mudou.
Nada parece mexido
e no entanto está diferente.
E à noite a lâmpada já não se acende.

Ouvem-se passos na escada
mas não são aqueles.
A mão que põe o peixe no pratinho
também já não é a mesma.

Algo aqui não começa
na hora costumeira.
Algo não acontece
como deve.
Alguém esteve aqui e esteve,
e de repente desapareceu
e teima em não aparecer.

Cada armário foi vasculhado.
As prateleiras percorridas.
Explorações sob o tapete nada mostraram.
Até uma regra foi quebrada
e os papéis remexidos.
Que mais se pode fazer.
Dormir e esperar.

Espera só ele voltar,
espera ele aparecer.
Vai aprender
que isso não se faz a um gato.
Para junto dele
como quem não quer nada
devagarinho
sobre as patas muito ofendidas.
E nada de pular miar no princípio.

Trad. Regina Przybycien

De Wislawa Szymborska 

sábado, 25 de janeiro de 2020

Autorretrato: Mulher Libertária


Autorretrato: Mulher libertária
Solange Luz[1]
          Nasci nesses lugarejos escondidos nos mapas. No afã de conhecer a vida, lia os livros do mundo e me encantava com o que via nas páginas, desejava conhecer os longínquos lugares apresentados.  Mas meu meio familiar me obrigou a exercitar a filosofia da ausência, faltava quase tudo. Ao meu redor, o vislumbre era seca, pobreza e o destino do casamento para as mulheres.
          Naquele lugar, desde menina sabia o determinismo da minha sorte, porém a literatura me mostrou que havia outras existências. Fugi desse destino. Rosário de trabalho. Muito estudo. Noites mal dormidas. Porém o sonho era sacrossanto: ser uma mulher livre. Desventuras, asperezas e alguns prantos não me alquebraram. Foi então que passei a acreditar que minha têmpera era mais forte que as pedras que margeiam o rio da minha cidade. 
        Aos treze anos saí de onde nasci para estudar o segundo grau em Picos, dividia um quarto sem janela com mais quatro primas e irmã. Todas nós cursávamos a escola Normal, para ter o salvo conduto de  uma profissão.
        Mas eu sonhava com mais, e aos dezesseis,  fui cursar a faculdade na capital, minha mãe, na sua ingenuidade, me deu o seguinte conselho: filha, na Universidade, cuidado com as pessoas más, na hora do intervalo fique perto dos professores! Ela acreditava que os educadores são aqueles que conduzem os alunos para o bem! Ela estava certa!
      Eu morava em um bairro distante em Teresina, longe de tudo, passava horas nas paradas de ônibus, indo para a faculdade, ou indo para um dos empregos, necessários para sobrevivência e custear meus estudos. Na Universidade, fiz poucas amizades em um curso elitizado, assim eu fiz da biblioteca, meu refúgio, entre as estantes de livros, eu passava as horas e achava que poderia conquistar o mundo. Foi em outros ambientes, como o da luta sindical que ampliei minha vida social e fiz minhas primeiras grandes amizades na cidade grande.
       Como dentista, assumi a missão de aliviar as dores dos outros, talvez numa forma atávica de minorar as angustias da minha alma. Um dia não tive mais necessidade. Após vinte e poucos anos, senti-me cansada do labor manual e da monotonia da profissão.  Abandonei os fórceps e cingi definitivamente a literatura e a docência, que sempre foi uma segunda atividade.  Aprendi coisas na vida que não encontrei nos livros.  Não há mais pressa, é tempo de sentir e vivenciar os sentimentos mais simples.



[1] Solange Luz é escritora e professora do curso de Letras/Português da Universidade Estadual do Piauí, campus Clóvis Moura em Teresina, Piauí, e doutoranda na Universidade Vale dos Sinos – UNISINOS/RS. Tem contos inseridos nas coletâneas Escrevendo com as E-moções, da Leonella Ateliê e Antologia Mulherio das Letras (Contos e crônicas, v.4) da Editora Mariposa Cartonera.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Fim de espera
Solange Luz

       É uma noite de maio, no céu alguns relâmpagos se espalham. Juliana chega da rua e, com receio da chuva, corre para o quintal e recolhe as roupas do varal. As folhas das árvores agitam-se violentamente sacudindo sua saia, o que faz ela se agarrar numa viga de concreto até passar o vento. Depois entra em casa.
      Lembra-se de rezar o terço, o que faz toda noite para pedir à Santa Rita de Cassia trazer seu marido de volta. Ele foi fazer uma viagem e não voltou mais. Tem esperança que ele retorne. Trabalhava comprando e vendendo feijão. Saiu da cidade no meio da noite, fugindo dos fornecedores, uns negócios deram errado e não teve como honrar os compromissos. Na noite da viagem, disse que passaria uns tempos fora e depois voltaria.
       Passaram-se meses. Ele ainda ligou algumas vezes. Fez promessas. Quando conseguisse melhorar de vida. Depois foi escasseando, até que parou. Cinco longos anos. E todos os dias ela esperava.
     Na comunidade, no início teve as cobranças, muitas perguntas, e ela sem respostas. Sentindo os olhares de comiseração do povo, aquela que fora abandonada.
    Juliana conhecera Inácio ainda bem jovem, com quinze anos, seus pais quiseram logo que os dois se casassem, ele era de boa família e assim o casamento foi arranjado, antes que o rapaz perdesse o interesse. Naqueles idos de 1970, a mãe dela sempre a lhe dizer que casasse logo, antes que ficasse velha, que era necessário ter um homem para dar segurança.
      Trinta anos depois ela está ali, naquela sala e naquela noite não tem vontade de rezar. A chuva cai forte no telhado e ela assiste a água descendo através da janela. O pé de amêndoa em frente à casa tem seus galhos retorcidos. Os trovoes ribombam.
     Naquele dia estivera no médico, ele diagnosticara um aneurisma em seu cérebro: precisava fazer a cirurgia. Falara do quão era delicado o processo. Os pensamentos fervilham e ela faz uma retrospectiva de sua vida. Os últimos anos. Volta a lembrar da mãe, mas agora sua figura não tem a importância de antes. Hoje seus conselhos não fazem mais sentido.
       De que lhe adiantou jogar fora toda sua vida pela espera infinita de Inácio? De que valeu tanta dedicação? Tudo em nome do amor! Agora está sozinha. Tem receio de enfrentar a cirurgia, mas sabe que não tem ninguém em quem se apoiar. Só em si mesma e na medicina.
       A chuva para, Juliana se lembra de preparar algo para comer. Amanhã será um novo dia.

domingo, 29 de julho de 2012

Carlos Pena Filho e um belo poema sobre o amor e suas dádivas.


Quando amamos sentimos o impulso de nos doar, de dar, de dedicarmos integralmente à pessoa amada, incorrendo no perigo de esquecermos de nós mesmos. Neste poema de Carlos Pena Filho, o eu-lírico declara, a partir de metáforas da natureza, essa doação.
As Dádivas do Amante
Deu-lhe a mais limpa manhã
Que o tempo ousara inventar.
Deu-lhe até a palavra lã,
E mais não podia dar.

Deu-lhe o azul que o céu possuía
Deu-lhe o verde da ramagem,
Deu-lhe o sol do meio dia
E uma colina selvagem.

Deu-lhe a lembrança passada
E a que ainda estava por vir,
Deu-lhe a bruma dissipada
Que conseguira reunir.

Deu-lhe o exato momento
Em que uma rosa floriu
Nascida do próprio vento;
Ela ainda mais exigiu.

Deu-lhe uns restos de luar
E um amanhecer violento
Que ardia dentro do mar.

Deu-lhe o frio esquecimento
E mais não podia dar.
                                            Carlos Pena Filho   (1929-1960)

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Solidão

     A solidão  é um estado da alma em que a pessoa  se sente só, desamparada, perdida e, ao mesmo tempo, desejando desesperadamente que alguém lhe acolha, abrace, escute. Uma solidão agônica que o eu lírico tem a dolorosa lucidez de que só tem a si mesmo. O poema  de Natércia Freire representa bem esse estado.


QUANDO AS MANHÃS ACABAREM


Corram depressa as cortinas
e não se importem que eu fique
entontecida no escuro,

Deixem que eu me abrace a mim
já que fujo ao que eu procuro...
Fechem todas as janelas
 e calem todas as falas.
(estou sozinha com as estrelas,
vou prendê-las e guardá-las).

Não me roubem a tristeza
de não viver a alegria
das manhãs e dos regatos.
(- Meus abraços de algum dia! -
Estou sozinha com os retratos.)

Corram depressa as cortinas
e não segredem, de longe,
as palavras pequeninas.
Fechem todas as janelas
e tapem todas as trinchas
para que eu não perca as estrelas.

Porque só tenho os meus braços
para me enrolar na agonia...
Quero mais a noite funda
que a mentira deste dia.

E não se importem que eu fique
endoidecida no escuro
Deixem que eu me abrace a mim,
já que fujo ao que eu procuro!
(Natércia Freire)

sábado, 30 de julho de 2011

Amor

Nomeei-te no meio dos sonhos


Nomeei-te no meio dos meus sonhos
chamei por ti na minha solidão
troquei o céu azul pelos teus olhos
e o meu sólido chão pelo teu amor

(Ruy Belo)